TROIKA: Como a imprensa económica percepcionou a aplicação do Memorando de Entendimento

0 Posted by - October 18, 2015 - Blog, Uncategorized

Shoot the Messenger (Mate-se o mensageiro)

 

“O comportamento de rebanho é uma das teorias mais demonstradas da economia. Ele revela que gestores, agentes económicos, políticos e banqueiros seguem as modas uns dos outros. E que normalmente é isso que leva toda a gente ao fundo no final…” (Pedro Santos Guerreiro, 28/7/2011)

1. Introdução.

A partir de 2010, mas sobretudo desde Maio de 2011 com o pedido de ajuda financeira ao Fundo Monetário Internacional (FMI), Comissão Europeia e Banco Central Europeu (BCE), foi imposta à população portuguesa uma política económica visando corrigir diversos desequilíbrios – um défice externo corrente próximo dos 10% do PIB, um défice orçamental superior a 11% do PIB e uma dívida pública no limiar dos 100% do PIB. Essa política contraiu o rendimento – por via fiscal e corte de apoios sociais -, visando retrair as importações, reequilibrar as contas públicas e redireccionar o investimento para a exportação.

Entre o 1º semestre de 2010 e o 1º semestre de 2014, o PIB caiu 7% e o consumo privado 9,3%. Nesse mesmo período, Portugal perdeu ao redor de 530 mil postos de trabalho[1]. A taxa de desemprego subiu de 10,6% para 14,5%. O número de pessoas que estavam numa situação de desemprego efectivo (incluindo os inactivos desencorajados ou indisponíveis, e o subemprego) subiu de um milhão para 1,3 milhões de pessoas[2]. A população activa retraiu-se, passando de 5,46 milhões para 5,22 milhões de pessoas, numa dimensão semelhante à redução da população total, delapidada por uma forte emigração, sobretudo de mão-de-obra qualificada. Os salários perderam 2,7 pontos percentuais no conjunto do PIB (de 46,5 para 43,7%), enquanto os excedentes brutos de exploração das empresas ganharam 1,9 pontos percentuais (ao passar de 42,2% para 44,1%). Em termos nominais, o montante global de remunerações reduziu-se em 3,9 mil milhões de euros. Apesar da quebra registada, salários e pensões contribuíram mais para as receitas orçamentais: passaram de 56% para 71% das receitas fiscais sobre o rendimento e de 22% para 32% do total das receitas fiscais do Estado. Já as empresas tiveram uma redução do esforço fiscal: desceram de 44 para 27% das receitas fiscais sobre o rendimento e de 17% para 12% das receitas fiscais do Estado. Nas contas do Estado, o défice reduziu-se de 9,8% do PIB em 2010 para 4,5% em 2014 (menos 8 mil milhões de euros), mas a dívida pública subiu, nesse período, de 94% para 130% para PIB (quase 40 mil milhões de euros). Fruto da quebra do PIB e do consumo total e do investimento, as trocas comerciais externas (exportações menos importações) passaram de um défice de 9,3% do PIB no 1º semestre de 2010, atingindo mesmo um superávite no 1º trimestre de 2013.

Um ajustamento económico desta dimensão, como não houve outro na História recente de Portugal, provoca forçosamente feridas profundas no tecido social e desarticular anteriores estruturas económicas e sociais. Até irremediavelmente. Por isso, é essencial compreender até que ponto a sociedade tomou consciência do que se passou. Parte essencial dessa consciência da população é obtida através do trabalho de ressonância social dos jornalistas, difundido e reproduzido pelos meios de comunicação social, tido como “síntese” do que se passa. Independentemente das razões que levam os jornalistas a percepcionar os factos de uma dada forma – e não de outras –, independentemente de saber até que ponto a consciência dos jornalistas foi interiorizada pela população ou apenas condicionou a consciência da população, um dos capítulos obrigatórios da análise deste período histórico da sociedade portuguesa passa por entender como foi que os jornalistas expressaram o que pensaram sobre o que viram.

Como viram a necessidade da intervenção da troika? Que diagnóstico foi consciencializado como causa de uma das mais violentas intervenções externas em Portugal, sem que se tivesse sentido o maior arrojo patriótico, tido como uma das mais vincadas características nacionais? Como foi que se entendeu um rol de medidas de corte abrupto de direitos adquiridos, do rendimento da população em geral? Como evoluiu o seu pensamento ao longo dos 3 anos de intervenção da troika? Quais foram as vagas de pensamento que se criaram e desfizeram? E, finalmente, qual foi o balanço geral da eficácia dessa intervenção? Foi um ideário que funcionou na realidade portuguesa, uma utopia conseguida, um programa eficaz? Ou foi uma experiência falhada e que, por isso, teve consequências gravosas para a população, para o funcionamento a prazo do país e que, por isso, deveria ser analisada para evitar no futuro situações semelhantes?

Este é o objectivo deste trabalho.

 

2. Metodologia

Como saber o que pensaram os jornalistas? Uma forma expedita é seguir o que os jornalistas escreveram ao longo do período em análise, em artigos de opinião, divulgados na comunicação social e cujas ideias acabam por ser repetidas em meios de divulgação massiva como canais de televisão e rádio. A opinião dos jornalistas – e sobretudo dos jornalistas especializados – acaba por ser a forma de solver um problema sentido tanto pelos “consumidores de informação” como pelos “produtores de informação”: há cada vez mais informação disponível, mas cada vez menos tempo para a sua digestão e para a produção de informação autónoma. E daí o risco do mimetismo de informação, como forma de esvaziar uma concorrência exacerbada entre meios de comunicação social, em luta por um bolo cada vez mais reduzido de publicidade. Neste contexto, a opinião dos jornalistas – nomeadamente a dos jornalistas da imprensa especializada, económica – pode ser essencial na formação de opinião dos jornalistas sem formação especializada, bem como dos jornalistas dos meios de comunicação mais imediatistas – rádio, televisão e online. No “nevoeiro da guerra”, a opinião escrita especializada acaba por ser o pivot da forma como se “deve” olhar para os acontecimentos.

Foi essa a razão que levou à opção de seguir seis jornalistas com estas características e ao mesmo tempo que tivessem acesso a formas de divulgação de massas, como rádio ou televisão. Foram escolhidos:

  • Pedro Santos Guerreiro (PSG): formado em gestão pelo Instituto Superior de Gestão (1996), tem um MBA pela Universidade Nova de Lisboa (2001/03), foi director do Jornal de Negócios de 1997 a 2013, a partir daí, director executivo do jornal Expresso, e é regularmente chamado a comentar os acontecimento em diversos canais televisivos;
  • Helena Garrido (HG): formada em Economia pela Universidade Nova de Lisboa (1979/83), pós-graduou-se na mesma Universidade, foi orientada por Vítor Gaspar, foi directora adjunta do jornal Diário de Notícias (2005/07), directora adjunta Jornal de Negócios (2008/13) e, finalmente directora do mesmo jornal (desde 2013, em substituição de Pedro Santos Guerreiro). É muitas vezes chamada a comentar a realidade em diversos canais de televisão;
  • Camilo Lourenço (CL): é licenciado em Direito Económico pela Universidade de Lisboa, passou pela Universidade de Columbia em Nova Iorque e University of Michigan, onde se especializou em jornalismo financeiro, e pela Universidade Católica. É jornalista desde 1987, passou por diversos jornais, foi redactor principal do Semanário Económico e coordenador da editoria Nacional no Diário Económico, director de diversas revistas económicas, director editorial de diversas revistas do grupo Abril/Controjornal, comentador de assuntos económicos na rádio (Radio Capital, RCP, Media Capital Radios, dois programas na M80), comentador da RTP e RTP informação (com um programa) e TVI. Desde 2010, faz palestras de formação a quadros médios e superiores, na área de Liderança, Marketing e Gestão. Autor de três livros: “Como esticar o Salário e Encurtar o Mês” (2009), “Basta!” (2012), “Saiam da frente” (2013).
  • António Costa (AC): formado em jornalismo, foi jornalista em diversos jornais, director adjunto da agência Lusa e director do jornal Diário Económico (2008/15), é habitualmente convidado de diversos canais de televisão, é uma presença regular num comentário radiofónico na Antena 1 da RDP e é comentador actual na TVI;
  • João Vieira Pereira (JVP): formado em Economia pelo ISEG e com uma passagem pela Universidade Católica Portuguesa e Northwestern University – Kellog School of Management (2011), foi director do jornal Semanário Económico (2003-2006) e é director adjunto do jornal Expresso e da revista Exame (desde 2006), responsável pelo suplemento de Economia desse jornal e convidado regularmente pela SIC (televisão do mesmo grupo económico) para comentar os acontecimentos;
  • Nicolau Santos (NS): é jornalista de 1978, um dos mais antigos jornalistas de economia do país, formado em Economia pelo ISEG (1979/80), editor de Economia na Agência ANOP, fundador do jornal Semanário Económico em 1987 e do Diário Económico, director do jornal Público, foi colaborador e responsável de programas na RTP, comentador económico da TSF, é actualmente director adjunto do jornal Expresso, responsáveis pelo programa “Expresso da Meia-Noite” na SIC Notícias, e uma presença regular num comentário radiofónico na TSF na Antena 1 da RDP.

Foram lidas e analisadas todas as suas crónicas publicadas em jornais entre 1/1/2010 e 30/6/ 2014.

De 1/1/2010 a 31/12/2010, período anterior à entrada da troika em Portugal, extraiu-se as ideias principais de cada crónica e expôs-se a sua distribuição numa timeline, como forma de perceber a sua distribuição ao longo do tempo e visualizar rapidamente os padrões de evolução dos principais temas abordados ao longo desse período. Essa distribuição torna visível o momento em que um dado tipo de ideia tendeu a aparecer e a desaparecer, dando lugar a outra ideia. Esta abordagem, se permite a recolha de inúmeros elementos de análise, torna porém a “nuvem” de estudo demasiado vasta, dado a dimensão do período. Como forma de obter resultados semelhantes com uma abordagem mais pragmática e adequada ao âmbito do projecto, optou-se – para o período entre 1/1/2011 e 30/6/2014 – por procurar respostas nos textos publicados às seguintes questões:

  • Origem da crise: foi a crise desencadeada por comportamentos dos agentes económicos (causa comportamental)? Ou foi fruto de problemas estruturais (causa estrutural)?
  • Necessidade da troika: Foi inevitável a intervenção das instituições da troika? E foi desejável?
  • Austeridade: Foram inevitáveis as medidas de austeridade aprovadas? E foram as desejáveis?
  • Memorando de Entendimento: Deram resultado as medidas constantes nas diversas versões do Memorando de Entendimento? E foram as diversas versões do Memorando devidamente aplicadas conforme o previsto?

Para cada resposta encontrada, atribuiu-se uma pontuação: entre -3 e 3. A graduação teve em conta, sobretudo, a maior ou menor clareza ou veemência das opiniões face às questões colocadas e às respostas expressas. Obviamente que existe neste tipo de trabalho uma grelha subjectiva do investigador na análise dos textos e da forma como os autores respondem às questões. A pontuação assentou na percepção que o texto deixou no investigador e, por isso, um dado assunto abordado recebeu valores distintos, de texto para texto de um mesmo autor. A importância da tarefa centrou-se em perceber qual a percepção com que ficaria um possível leitor, caso lesse cada um dos textos como se fosse o primeiro do autor sobre uma dada matéria. Por outro lado, poder-se-á acrescentar que esse “enviesamento” do investigador é uma constante ao longo da leitura dos artigos e que, por isso, a oscilação na pontuação da análise corresponde sobretudo à variação das opiniões dos autores ou à diferente clareza de opiniões dos autores. De qualquer forma, ter-se-á de ter cuidado na análise da quantificação feita que, na verdade, deverá ser mais de ordem qualitativa. A quantificação do número de aparições nos textos lidos apenas é relevante como indicador do espaço que cada uma das questões ocupou nos diversos suportes noticiosos e, por isso, até que ponto é que a “massa” de textos, de repetições, de acumulação de respostas, poderá ter sido importante para a formulação de uma percepção dos leitores, nem que fosse pela força da repetição. Igualmente por essas razões, crê-se que o interesse deste trabalho se encontra mais na exemplificação das ideias retiradas dos textos, que podem ser ilustrativas da forma como se foram formando as diferentes percepções da crise.

 

3. A crise de 2010 como preâmbulo de uma crise maior

O ano de 2010 ficou marcado pelo rescaldo na crise financeira norte-americana de 2007/08 que, sobretudo após a falência do banco Lehmon Brothers, se repercutiu pela Europa e obrigou os diversos Estados a assumir os custos da protecção do sector financeiro, com repercussões no desequilíbrio das contas orçamentais públicas e nas economias. Para o pensamento dos jornalistas do painel, a julgar pelas suas análises, concorreram diversos acontecimentos internacionais: 1) a hesitação das instâncias comunitárias em combater a recessão, numa perturbação que se avolumou no tempo e que veio a sofrer uma forte reviravolta, enveredando-se por um programa austeritário por toda a Europa; 2) a pressão dos mercados financeiros sobre os títulos de dívida pública de vários países; 3) a explosão da crise grega, com a denúncia pela Comissão Europeia, a 12/1/2010, das irregularidades sistemáticas cometidas pelas autoridades gregas, passando pelo empréstimo de 30 mil milhões de euros a 11/4/2010, pelo pedido formal de apoio financeiro a 23/4/2010, até culminar com o acordo de empréstimo de 110 mil milhões de euros por três anos em troca de cortes na despesa orçamental de 30 mil milhões de euros, com fortes ondas de impacto noutros países, como foi Portugal; 4) a apresentação a 21/11/2010 do pedido formal do governo irlandês de apoio financeiro.

Esta trajectória em plano descendente até à intervenção externa colou-se ao trajecto nacional. Durante o período eleitoral de Outubro de 2009, o governo Sócrates sustentou que a crise dificilmente desembarcaria em Portugal e que as contas orçamentais estavam controladas, mas logo a partir de Janeiro de 2009, a recessão europeia fez estremecer a economia nacional e o desemprego em Portugal subiu exponencialmente. No ano de 2010, a percepção pelos jornalistas dos momentos de pré-entrada da troika em Portugal ficaram marcados pelos seguintes factos: 1) a vitória pelo PS das eleições legislativas de 2009, sem maioria absoluta e um Orçamento de Estado (OE) para 2010, aprovado apenas a 12/3/2010, assumindo um défice para 2009 muito superior ao reiterado na campanha eleitoral[3]; 2) o anúncio a 6/3/2010 da aprovação pelo governo português de o Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC) 2010-2013 (que viria a ser conhecido por PEC1), com as primeiras medidas de desvalorização interna e de privatização de activos públicos, por forma a que levar o défice orçamental para 5,5% do PIB em 2011 até 2,8% em 2013; 3) o ataque sistemático das agências de rating à notação dos títulos de dívida pública portuguesa, corroborando as críticas da Comissão Europeia sobre a insuficiência das medidas adoptadas; 4) o anúncio a 27/4/2010 de um segundo pacote de medidas (PEC2), com o acordo entre PS e PSD para um aumento de impostos; 5) o corte a 26/5/2010 dos apoios anti-crise criados meses antes; 6) a exigência da Comissão Europeia a Portugal e Espanha para reformas estruturais, nomeadamente no mercado de trabalho; 7) a entrada em vigor a 1/8/2010 do que ficaria conhecido pela “condição de recursos”, que limitou a obtenção de apoios sociais; 8) a aprovação a 29/9/2010 de um novo pacote de medidas (PEC3); 10) a realização de uma greve geral em Portugal, juntando historicamente as duas centrais sindicais, embora não evitando, passados dois dias, a aprovação do PEC3 pelo Parlamento, viabilizado pela direita, e que a 15/12/2010 fossem aprovadas 50 medidas de austeridade; 11) a publicitação a 8/1/2011 das pressões da Alemanha e França para que Portugal aceite apoio financeiro; 12) a aprovação a 11/3/2011, de um novo pacote de medidas de austeridade (conhecido por PEC4); 13) a realização a 12/3/2011 de uma grande manifestação convocada pela denominada “geração à rasca”; 14) o anúncio a 9/3/2011 de um compromisso entre as confederações patronais e da UGT para um acordo de reformas estruturais que viria a ser celebrado a 22/3/2011 (Acordo Tripartido para a Competitividade e Emprego); 15) o chumbo pelo Parlamento, a 13/3/2011, do PEC4 e a demissão subsequente do governo Sócrates, abrindo a porta a uma negociação com as instituições da troika que culminaria com o pedido formal de apoio financeiro a 6/4/2011.

A evolução rápidas destes acontecimentos, em paralelo com a sucessiva derrapagem de todas as metas traçadas nos diversos documentos oficiais, tornaram-se na imagem desse período. Quando se analisa os textos dos jornalistas escritos em 2010, verifica-se um pendor muito forte a justificar medidas de austeridade mais drásticas, forçando a uma aprovação mais célere e radical.

Das cerca de mil referências assinaladas nas suas crónicas de 2010, quase 20% refere-se a um diagnóstico que impõe medidas de austeridade e uma forte contracção orçamental. Além dessas, mais de 15% defendem a adopção urgência de medidas concretas de austeridade e quase outro tanto a sustentar a inevitabilidade dessas medidas. Esta terapia foi alicerçada na ideia da necessidade de Portugal mudar de modelo económico, já que o vigente era gerador de desequilíbrios externos e orçamentais. Sobre as condições político-partidárias, muito espaço foi ocupado a defender uma aliança entre PS e a coligação de direita e, nos últimos tempos, a criticar a pobreza das elites políticas, o que parece representar uma antecâmara da defesa posterior da vinda da troika, como instrumento necessário para a concretização das medidas que nós, portugueses, não seríamos capazes de executar.

Em traços globais, é possível traçar diferentes “vagas” de preocupações. Primeiro, há as “vagas” transversais, que se prolongam ao longo do período até à entrada da troika, embora umas tenham sido mais expressão do que outras: 1) é necessário um entendimento do PS com os partidos de direita (“arco da governação”); 2) “não soubemos tomar conta de nós” e agora temos o que merecemos – “a culpa é nossa”, “vivemos acima das nossas possibilidades”; 3) “temos de fazer o que os mercados querem”; 4) para tanto, é necessário uma política de austeridade, que permita a economia melhorar depois. Há, pois, uma tonalidade subjacente que é a de que não há alternativa a uma política de austeridade e, por isso, a contestação de nada vale. É preciso fazer o que é preciso.

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Muito da possível eficácia do discurso dos jornalistas deve ficar a dever-se à repetição de uma dada ideia ao longo do tempo. Na impossibilidade física de reproduzir esse efeito, dar-se-á exemplos dessa acumulação de ideias em 2010.

 

CAIXA: “A culpa é nossa”

“Quando gastamos mais do que produzimos, há sempre um momento em que alguém tem de pagar a factura” (CL, 5/1/2010). “Vamos ter de cortar nos nossos consumos presentes, alinhando-os ao rendimento actual, ao que já gastámos no passado e ao pouco que vamos crescer no futuro.” (HG, 3/3/2010). “Hoje não estaríamos preocupados com as agências de avaliação de risco se tivéssemos tido mais juízos a partir de 1995” (HG, 22/3/2010). “Falhámos em tomar conta de nós mesmos, agora outros poderão tomar-nos a soberania económica. Talvez seja disso que precisamos” (PSG, 20/4/2010). “Cometemos erros graves e temos que os corrigir rapidamente” (NS, 24/4/2010). “Como afirmou Nuno Amado, presidente do Santander, ao Diário Económico: o País pôs-se a jeito” (AC, 1/5/2010). “Pusemo-nos a jeito. Que falta de jeito, a nossa. Alambazámo-nos a crédito e fomos o Pantagruel das receitas falhadas. Como alguém dizia ontem, o ‘há vida além do défice’ deu nisto: défice além da vida” (PSG, 13/5/2010). “Os maus da fita não são os mercados financeiros, somos nós” (HG, 23/9/2010). “Este OE devia vir acompanhado de um pedido de desculpas. Mas traz apenas uma anotação colada, que diz: É mau mas tem que ser. É mau? É. Tem de ser? Tem” (PSG, 18/10/2010). “Supostamente, somos capazes de resolver, sozinhos os nossos problemas. Não somos, não. E quanto mais tempo levarmos a perceber isso, pior” (CL, 16/11/2010).

 

CAIXA: “Temos de fazer o que os mercados querem”

“Por mais viril que se insinue, a política partidária é o sexo fraco que está casado com a economia. Quem manda são os mercados” (PSG, 21/1/2010). “Está viabilizado o OE que mais dor pode causar aos portugueses, não por esta ou aquela medida, mas pelos sinais que vai (ou não) dar aos mercados financeiros internacionais” (HG, 25/1/2010). “Seja como for, não tem outra saída senão surpreender positivamente os mercados” (CL, 5/3/2011). “Entre o importante e o urgente, está atacado o urgente: ser levado a sério pelos mercados financeiros internacionais” (PSG, 11/3/2010) “Qualquer observador isento sabe que existem diferenças significativas entre as duas economias [Portugal e Grécia]. O problema é que os mercados não as vêm (…) É injusto? É. But life is tough” (CL, 20/4/2010). “Não há margem de erro. Os mercados internacionais não vão perdoar qualquer deslize” (AC, 22/7/2010). “Os nossos credores estão a perder a paciência (…). O OE é a bala de prata que resta” (PSG, 17/9/2010). “Como os mercados já deixaram claro, (…) são necessários resultados” (AC, 21/9/2010). “O Presidente deveria aconselhar o Governo/PS e o PSD a calarem-se. (…) O espectáculo que estão a dar, em público, não contribuiu para a defesa do que ambos dizem querer defender, a imagem de Portugal junto dos mercados e dos investidores” (AC, 27/9/2010).“Foi o ministro das Finanças quem ontem governou. E só temos a desejar que continue a sê-lo. Porque este pacote acalma os mercados” (PSG, 30/9/2010). “O OE é mau, todos o sabem, mas indispensável para evitar que o País perca credibilidade nos mercados internacionais” (AC, 30/10(2010). “A segunda lição é que não vale a pena lutar contra os mercados” (CL, 23/11/2010).

 

CAIXA: É precisarmos austeridade para depois melhorarmos

“O próximo OE precisa de cortar despesas e aumentar receitas – e resistir à tentação das artimanhas. Congelar salários, progressões. (…) Mexer nos impostos. Vender património” (PSG, 6/1/2010). “A certeza de que é preciso fazer ao País o que se faz às árvores: cortar para crescer melhor” (PSG, 27/1/2010). “Está na hora de os liberais saírem da toca. Em Portugal, já concluímos que o Estado é caro, insustentável e ineficiente. Não podemos pagar tantos salários, pensões, riscos a privados, filigranas partidárias, subsídios, incentivos, apoios, enlatados sob o chapéu-de-chuva da protecção estatal. Não é uma ideologia, é viabilidade” (PSG, 3/2/2010). “Até porque, se não o fizermos, outros nos obrigarão a fazer. Por isso, o anúncio do congelamento dos salários nas empresas públicas é um bom sinal. Que outros se sigam” (NS, 27/2/2010). “O Estado só consegue reduzir a sua dívida vendendo activos públicos” (CL, 9/3/2010). “A boa noticia do PEC é que ele é mau. Mau para funcionários públicos, para alguns pensionistas, para muitas famílias da classe média, para utentes de serviços do Estado, para desempregados, para dependentes de rendimentos sociais, para investidores. Não é sadismo. É porque tinha de ser” (PSG, 11/3/2010). “E o congelamento dos apoios sociais, como o RSI, reclama de todos nós o regresso a atitudes mais solidárias e menos dependentes do Estado no combate à pobreza” (HG, 22/3/2010). “O melhor que poderia acontecer a Portugal era um plano à FMI imposto pela União. Em vez desta morte lenta, teríamos uma violenta, boa e rápida recessão. Para voltarmos de novo a crescer com saúde” (HG, 22/4/2010). “Do Estado às famílias, todos vamos ter de enfrentar a realidade de sermos mais pobres do que pensávamos. E sairemos dela menos saloios, menos deslumbrados com palácios inúteis a que chamaram investimento público” (HG, 22/9/2010). “Moral da história: a recessão é como uma dieta que se tomou inevitável para equilibrar o organismo” (CL, 16/5/2011).

 

Para os jornalistas do painel, o interesse nacional confunde-se politicamente com a defesa de um governo estável e de um largo consenso que apenas pode ser assumido pelas forças partidárias que designam facilmente como sendo do “arco da governação”, ou seja, excluindo os partidos mais à esquerda. Os partidos escolhidos são os “que sabem o que é exercer o poder” e que, por isso, “têm a obrigação de assumir comportamentos parlamentares mais responsáveis” (HG, 18/1/2010). Pela forma como nasceu o Memorando, existe “um contexto político e económico (…) propício a uma negociação (…) entre o PS, o PSD e o CDS”. E essa “fórmula” deveria aliás, “passar a ser lei em todos os orçamentos”. Ou seja, excluindo a “Esquerda portuguesa, o PCP e o BE” porque “teimam em ser partidos anti-sistema, que acrescentam muito pouco à Democracia, par além de frases, soundbytes e manifestações organizadas de rua” (AC, 25/1/2010). É como se houvesse uma força exterior a unir os partidos responsáveis e que se materializa na atracção do PS para o grupo dos partidos à direita. “Se não cooperarem, a economia afunda, o FMI entra e o ónus da crise financeira recai sobre ambos” (PSG, 22/10/2010). “O Bloco Central está para a política portuguesa como o FMI está para a economia. Ninguém os quer – ou quase ninguém… -, mas a probabilidade de recorrermos a eles, aos dois, para ultrapassarmos as crises económico-financeira, social e política aumenta a cada dia que passa” (AC, 6/12/2010). “É o abismo social, económico e financeiro que temos à nossa frente se PS, PSD e CDS não se entenderem”(HG, 11/4/2011).

Agregando as diversas ideias em ideias mais fortes, com um significado mais lato, , torna-se clara a percepção que os jornalistas analisados tiveram em 2010.

 

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Uma ideia constante ao longo do período é a de que, se houve ineficácia das medidas, ela não se deveu à terapia – que era obrigatória e sem alternativa – mas antes à relutância política em aplicar drástica e resolutamente o medicamento, ainda que tivesse efeitos imediatos tóxicos. Foi esse caldo de ineficácia e hesitação europeia face à “fúria” dos mercados que formatou o ambiente que, na maioria dos jornalistas, entroncará na aceitação implícita de uma missão externa, como sinal de uma clarificação e de autoridade política para fazer o que deve ser feito, já que as autoridades portuguesas se mostram incapazes.

Esta ideia de clarificação e do fim do “pântano” surge já em Setembro de 2010 e prolongar-se-á por 2011, até às eleições legislativas após a assinatura do Memorando de Entendimento com a troika, colocando no Governo uma coligação de direita.

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Essa vaga é composta por diferentes ondas de ideias: a primeira, frisando a falta de “bons políticos” em Portugal, que “os políticos mentem” e que, ao contrário, têm que falar verdade ao povo português porque o povo “aceita sacrifícios” se lhe falarem verdade; e a segunda avisando que negar a necessidade da austeridade vai obrigar a uma intervenção externa que porá a casa na ordem, mas que essa intervenção não é, por isso, má por natureza (“ou fazemos nós, ou o faz o FMI e com mais dureza”, o FMI vem aí porque é preciso fazer austeridade, “nem pensar em sair do euro”, a orientação da Alemanha e do FMI não tem de ser má, “devia-se pedir ajuda”). É com este espírito que se entra no ano da intervenção da troika.

 

 4. A defesa da entrada da troika (Janeiro a Junho de 2011)

 As lições da crise vivida em 2010 prolongam-se por 2011. Nos seus artigos perpassa a ideia de que a crise económica nacional tem muito mais de “comportamental” do que “estrutural”. Mais do que poderiam ser as consequências das alterações ocorridas desde 1989 com a reunificação alemã que redundou no Tratado de Maastricht; na adopção de uma política monetária e cambial europeia ancorada na estabilidade dos preços; a abertura comunitária ao leste europeu, a adesão de Portugal ao embrião da moeda única, o desmantelamento alfandegário a países concorrentes de Portugal (China, Índia, Paquistão), a adesão do escudo à moeda única com uma taxa de câmbio valorizada, culminando com a ratificação no Parlamento do Tratado Orçamental, mais do que isso, a maioria dos jornalistas do painel acham que os portugueses não souberam aproveitar os aspectos positivos de uma moeda forte – estabilidade de taxas de juro e baixa inflação – para se apetrechar para o futuro. Preferiram o consumo ao investimento, o lazer ao esforço, o crédito, a fantasia ao gasto criterioso das verbas públicas. Esbanjaram, aumentando a dívida, sem criar condições do seu pagamento.

Essa leitura da “culpa” perdura ao longo de 2011. Curiosamente, como se pode ver no gráfico a abrir este capítulo, a importância da “Causa comportamental” decai quando surgem dificuldades na aplicação do Memorando, como seja a situação vivida em Setembro de 2012 e ao longo de 2013. À medida que o tempo passa e as metas do Memorando vão falhando, as causas inelutáveis – e “estruturais” – ganham terreno e relativiza-se uma terapia económica assente na correcção de maus comportamentos.

vagas imagem crise

Quanto à entrada da troika em Portugal, a maioria do painel de jornalistas manteve nos primeiros meses de 2011 a sua desconfiança. Fosse por questões financeiras – o custo seria bem mais elevado do que o financiamento em dívida – fosse por uma questão de soberania nacional ou mesmo de auto-estima nacional. As palavras usadas são fortes como é possível ler na caixa em baixo. Mas a partir de certa altura, as opiniões dos jornalistas assumiram progressivamente uma quase unanimidade de apoio de uma intervenção externa. Esta alteração coincide com o momento em que as agências de rating penalizaram os bancos nacionais e em que os seus banqueiros mudaram de opinião, em consonância com fortes pressões externas, passando a defender que Portugal deveria perdia “ajuda externa”.

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CAIXA: Do receio da intervenção externa ao abraço à troika

Primeiro, era o receio. “As experiências grega e irlandesa mostraram que as intervenções criam novos e mais graves problemas, ameaçando a própria vida da moeda única. Mas está nas mãos do governo português evitar o pior” (HG, 10/1/2011). “As probabilidades de Portugal não ser intervencionado pelo FMI são as de atirar uma moeda ao ar e a moeda ficar em pé. É uma probabilidade pequena, minúscula e que já não depende essencialmente de Portugal – mas vale a pena lutar por ela. Não apenas por dignidade.(…) Por soberania” (PSG, 12/1/2011). “Há vias mais baratas e politicamente menos perigosas para a ajudar os países em dificuldades financeiras” (HG,13/1/2011). “O BCE percebeu (e os líderes europeus?) que a estratégia de criar uma ala de infecto-contagiosos na Zona Euro (já lá estão Irlanda e Grécia) não funciona” (CL, 13/1/2011). “Mas qual é a alternativa? O FMI? Não: o recurso ao fundo europeu é muito mais caro do que se supunha. (…)E corremos o risco de entrar numa espiral negativa e o risco de execução orçamental passar da despesa para a receita: é o paradoxo dos processos de consolidação brutais, como o que enfrentamos” (PSG, 14/1/2011). “Entendamo-nos. (…) Querer que o FMI venha para arredar Sócrates do poder pode ser interessante para o partido A ou B, mas não coloca os interesses nacionais acima dos partidários” (NS, 15/1/2011). “O modelo de socorro à Grécia e à Irlanda fracassou, pois nem conteve o risco sistémico do euro, nem aliviou nesses países os custos de financiamento” (PSG, 17/1/2011). Mas de repente, a vaga de opiniões muda. “É irrelevante saber de onde vem a ajuda” (CL, 17/2/2011). “O debate histriónico FMI entra/não entra é um exercício de anti-retórica política de fuga à realidade. Portugal já está a ser ajudado. O BCE já detém 15% da nossa dívida pública (quin-ze-por-cen-to!) e as suas equipas andam nos ministérios de Lisboa (…) Troque três letras: não é FMI, é BCE. O resto é conversa fiada. Digo bem: fiada, muito fiada, impossivelmente fiada” (PSG,18/2/2011). “É preciso desdramatizar um eventual pedido de apoio. Essa ajuda será muito útil e importante para o país fazer as correcções que tem de fazer, na sua estrutura institucional” (HG, 21/2/2011). “É necessário que os Estados renunciem a parte da sua soberania” (PSG, 22/2/2011). “Agora, dizem-nos que não há volta a dar. No máximo em Abril, teremos de pedir ajuda ao fundo de resgate e ao FMI. Para quê, eis a questão. Olha-se para a Grécia e Irlanda e vê-se que estão a pagar taxas na casa dos 11% e 9%. O desemprego sobe em flecha nos dois países. (…) Não é a economia, estúpido. É a economia dos e para estúpidos” (NS, 26/2/2011). “Desde 2008 que não se governa em Portugal. Em 2011 somos governados de fora” (PSG, 1/3/2011). “O argumento de que os bancos alemães têm muito a perder com a queda de Portugal é infantil” (PSG, 2/3/2011). “O Governo não deveria querer eleições, devia ter peito para assumir o pedido de ajuda externa que, de uma forma ou de outra, ser feito” (PSG, 22/3/2011). “Ricardo Salgado, Carlos Santos Ferreira e Fernando Ulrich juravam, ainda há poucas semanas, que o Governo deveria fazer tudo o que pudesse para evitar um pedido de ajuda externa e alertavam para os riscos dessa decisão. Esta semana, o mundo mudou. (…) Qual é a vantagem de prolongar esta agonia e não pedir ajuda, seja ela qual for? Nenhuma, pelo contrário” (AC, 6/4/2011). “Os banqueiros acordaram. Depois de meses a acomodar o comportamento suicidário do Governo desistiram de comprar dívida pública” (CL, 6/4/2011). “Como alguém dizia, os portugueses são um povo que não se governa nem se deixa governar. Vamos ter de nos deixar governar, à força. E isso tem o seu lado positivo.” (AC, 7/4/2011). “Todo este choque tem de ser para um bem. Para que Portugal deixe de ser Estado de sítio e passe a ser um sítio com Estado. Esta é uma oportunidade única para mudar de era (…) Isso é criar, enfim, um Estado moderno” (PSG, 8/4/2011). “A ideia de que o modelo do FMI não serve é um equivoco” (CL,15/4/2011). “É uma tragédia termos de recorrer a ajuda externa mas só para o nosso ego” (JVP, 30/4/2011). “Com a permanente assistência técnica do FMI e de Bruxelas, que por cá passarão os próximos anos a fiscalizar todos os actos e omissões do Governo, os portugueses poderão olhar para o futuro com esperança” (AC, 4/5/2011). “Três homens que não conheciam a economia portuguesa vieram a Lisboa e em três semanas fizeram o melhor programa de Governo que o país conheceu em décadas. (…) Ontem alguém me dizia que quem faz opinião devia sugerir a contratação da Troika para gerir o país, em regime de outsourcing, durante o tempo que durar o programa de ajustamento” (CL, 5/5/2011).

 

Rapidamente, a ajuda externa torna-se sinónimo de uma mudança estrutural em Portugal que será feita a grande velocidade e com efeitos positivos para o conjunto do país. A maioria dos jornalistas olha para o Memorando de Entendimento como um pesado caderno de encargos, mas com o fim à vista: a melhoria da vida dos portugueses numa economia mais competitiva. Em poucos meses, o diabo surge quase como o advento de um novo manifesto revolucionário. “O plano (…) tem de ser aquilo que nos separa do regresso ao subdesenvolvimento” (HG, 3/5/2011). A troika trouxe “um plano estratégico para tornar a economia mais competitiva e justa. (…) É uma excelente noticia. Não vai ser de arromba, vai ser um rombo. Que seja para mudar de vida. Antes de vida que de moeda, de soberania, de país. Feliz ano novo” (PSG, 4/5/2011). “Temos uma oportunidade (…) para reescrevermos a nossa História” (AC, 5/5/2011). O programa para Portugal é “claro, transparente, quantificando metas, definindo o que se poupa ou o que se obtém com cada medida e fiscalizando trimestralmente esse cumprimento” (NS,7/5/2011). “Reformas no mercado de trabalho, na concorrência, na energia, no arrendamento, na justiça, etc. Estas medidas visam mudar a nossa economia de modo a que, depois da esfrega dos próximos dois anos, ela possa começar a crescer” (PSG, 12/5/2011). “Que sirva para repor a economia portuguesa nos eixos, como o remédio que se toma para curar uma doença: amargo mas necessário” (AC, 13/5/2011). “Uma última oportunidade, que temos de agarrar sem submissão mas com humildade” (PSG, 16/5/2011). “Três anos para colocar a economia portuguesa a crescer e pagar as dívidas ao estrangeiro. E não haverá tempo para descansar” (AC, 6/6/2011).

Os jornalistas alinham politicamente com a coligação de direita, como sendo a cara da mudança que se impõe ao país. “Por isso, da minha parte, assumo aqui um compromisso. Já escolhi em quem vou votar no próximo dia 5 de Junho: na troika e no plano de reforma que nos permitirá ter um Estado muito diferente, outro Estado, para melhor, do que aquele que temos, mais justo, mais competitivo e criador de riqueza” (AC, 5/5/2011). “Passos Coelho tem de fazer um Governo bom e depressa. Para cumprir o plano da troika já” (PSG, 6/6/2011). “PSD e PP têm todas as condições políticas para realizar os trabalhos marcados pela troika. Além da maioria no parlamento, acreditam naquela terapia e contam, se assim o escolherem, com quadros técnicos com qualidades políticas e espírito de serviço público para executarem as medidas” (HG, 9/6/2011). “O Governo nasceu. Não é um cisne branco, nem um patinho feio, é um Governo (…) O Cabo mais difícil de passar da História de Portugal tinha dois nomes: Cabo das Tormentas e Cabo da Boa Esperança. (…) O país não torce pelo Governo, torce por si mesmo” (PSG, 21/6/2011). “O que se passou nestes últimos dois dias demonstra que temos equipa, temos governo e temos Presidente da República. (…) Discursos, declarações e procedimentos começam a revelar que existe uma da reorientação política neste Governo liderado por Pedro Passos Coelho. Não há uns a defenderem um caminho e outro o contrário. E o líder não só diz, como já mostrou que não tem medo de errar” (HG, 22/6/2011). “Mudar de vida? A vida já mudou de Governo. Agora nós. Você. Eu.” (PSG, 24/6/2011).

 

5. A aplicação do “programa” da troika

“Um dia, o coelho pediu ao mocho para o ajudar a escapar à raposa. Responde o mocho: “Quando vires a raposa, transforma-te num cágado”. O coelho afastou-se todo contente. Eis senão quando de repente se lembra: “Mas como é que eu me transformo num cágado?!” Voltou atrás e fez, aflito, a pergunta ao mocho. Resposta do sábio: “Eu só dou a estratégia. Tu é que tens de definir a tática.” (NS, 7/5/2011)

Durante o período de intervenção externo da troika em Portugal, entre Maio de 2011 e o 1º semestre de 2014, a evolução do pensamento dos jornalistas sobre a eficácia do Memorando de Entendimento esteve muito ligada à forma como se aplicou a austeridade. Na sua maioria, o painel esperava uma intervenção rápida, no sentido de uma reestruturação profunda do Estado e da economia. Mas à medida que as decisões mais duras iam sendo adiadas e substituídas por medidas “fáceis” – como aumento de impostos – o painel inflectiu a sua apreciação e foi se decepcionando. Esse adiamento das grandes decisões teve – no seu entendimento – o efeito de prolongar a recessão, sem criar alternativas económicas que compensassem a quebra da economia. Os jornalistas assumiram quase o papel de paladinos da defesa da pureza inicial do Memorando, tentaram influenciar o Governo no sentido da sua plena aplicação, lutando contra uma a atitude “política” do Governo, de estar consecutivamente a empurrar com a barriga os problemas reais e de nada fazer para mudar as estruturas. Para os jornalistas, a deficiente aplicação do Memorando tornou urgente, todos os dias, a aplicação de medidas fundas de austeridade e a sua ausência conduziu à leitura de que, cada vez – e até ao fim -, o Memorando foi ineficaz. Uma decepção.

imagem austeridade

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Olhando para os gráficos, é possível definir vários períodos ao longo dos três anos de aplicação do Memorando de Entendimento:

1) de Maio a Dezembro de 2011, com um pico óbvio em Junho de 2011 (no mês seguinte à da assinatura do Memorando e da tomada de posse do Governo da coligação de direita chefiada por Pedro Passos Coelho e Paulo Portas), os jornalistas são favoráveis à intervenção, mobilizados pelo “estado de necessidade”, da inevitabilidade de uma política de austeridade e mesmo da sua eficácia, porque integrada num plano de alteração estrutural da economia e do Estado. Vão aceitando medidas extraordinárias – aumento de impostos e expedientes orçamentais, ao arrepio do mandato eleitoral do Governo e do Memorando – à medida que vão se tornando conhecidos dívidas orçamentais não contabilizadas pelo Governo socialista ou camufladas pelo Governo Autónomo da Madeira, que atingiram 3,4 mil milhões de euros. A avaliação do Memorando é a de, por essa razão, que estava a ser mal aplicado e a sua eficácia negativa, embora o Governo mantenha o “estado de graça”. Os mecanismos desenhados para o crescimento não são aprovados ou são afastados porque ineficazes ou demasiado pesadas orçamentalmente (descida da TSU)

 

CAIXA: O primeiro choque com a realidade

“Vítor Gaspar confirmou as más notícias, um imposto extraordinário a incidir sobre o subsídio de Natal, e adiou o anúncio das boas, as medidas concretas de corte de despesa e de emagrecimento do Estado, que libertem a economia, as empresas e os cidadãos” (AC, 15/7/2011). “Pedro Passos Coelho não foi eleito para ser popular. E Portugal não tem tempo” (PSG, 15/7/2011). “O nosso futuro joga-se até Março do próximo ano. Na Primavera de 2012 ou estaremos todos a suspirar da alívio, porque conseguimos ultrapassar os mais importantes obstáculos que estão nas nossas mãos vencer, ou estaremos condenados a um dramático empobrecimento” (HG, 27/7/2011). “O estado de graça acabou-se, o benefício da dúvida não. Ainda” (AC, 5/9/2011). “Para cortar despesa do Estado é preciso ir aos salários Função Pública ou às pensões, é preciso ir às empresas do Estado, é preciso ir à Saúde e à Educação, é preciso começar a reduzir a dívida para baixar a âncora dos juros” (PSG, 6/9/2011). “O Governo tem de rescindir contratos com pelo menos 70 mil funcionários públicos em 2012” (AC, 14/9/2011). “A grande despesa está no Estado Social que só se salvará se finalmente se tocar no que nunca se tocou” (HG, 16/9/2011). “Difícil é dar um propósito às medidas de austeridade (…) Ter estratégia. Ir à guerra. Foi para isso que elegemos Passos Coelho como primeiro-ministro” (PSG, 27/10/2011). “Chegou a hora de atacar o que de facto tem danificado a economia portuguesa. O que de facto a tem impedido de crescer (HG, 17/11/2011).

 

2) de Dezembro de 2011 a Junho de 2012, as opiniões dividem-se sobre a inevitabilidade da austeridade e sobre a sua eficácia, ou mesmo sobre a eficácia do Memorando de Entendimento. Mas na média do painel, há como que um reagrupar de posições em torno da inevitabilidade da austeridade, pressionando por mais ousadia por parte do Governo. É visível uma inversão de sinal quanto à eficácia do Memorando. Encontram-se explicações virtuosas para aquela que foi a grande surpresa para os autores do Memorando – a subida do desemprego. A aposta no sector dos bens transaccionáveis passa por “pôr um fim aos apoios e incentivos aos sectores protegidos” e essa estratégia “só pode ter uma consequência no curto prazo: o desemprego. Porque muitos dos sectores e das empresas que foram sustentadas artificialmente não regressarão, pelo menos com o mesmo nível de emprego” (AC, 16/5/2012), nomeadamente naqueles “sectores que mais beneficiam da despesa do Estado” (CL, 25/5/2012). Por outro lado, essa pressão sobre o mercado de trabalho tem outras vantagens como a descida salarial para evitar a subida do desemprego (HG, 16/4/2012). “Uma das coisas boas que estão a acontecer é a mudança rápida de hábitos dos portugueses. As marmitas, a redução do tráfego, as marcas brancas não são apenas opções de pobreza, são novos modos de vida. Silva Lopes sempre o disse: os portugueses são muito mais flexíveis do que se imagina” (PSG, 24/2/2012). Mas mantém-se uma crítica grossa à ineficácia à luta dos “interesses” no Estado: “Falta, ao Governo, vencer as resistências à mudança de grupos que se habituaram a ganhar dinheiro sem criar valor e à mesa do OE” (HG, 28/3/2012). “Cada poupança na Saúde é uma redução do serviço. Mas quase cada euro lá investido é também um negócio para alguém. E tem havido negócio a mais na Saúde. (…) O Saúde gratuita para todos é a frase que os interesses instalados mais gostam de dizer – e de ouvir dizer” (PSG, 12/1/2012). “Portugal ainda pode perder a guerra da prosperidade por capitulação do Governo aos interesses” (HG, 28/3/2013). E engrossa a ideia de que o Governo está a perder o élan e a visão estratégia ou a cair em experimentalismo insensatos. A rápida mudança tarda.

 

CAIXA: Uma austeridade sem visão

Austeridade, sim, mas não isto. “A ‘troika’ – e particularmente o FMI – já percebeu que tem de forçar a adopção de reformas estruturais, sob pena de a austeridade não servir para mais nada senão para acentuar a recessão e o desemprego” (AC, 22/12/2012). “A austeridade, por si só, não vai trazer crescimento económico. As reformas estruturais sim, mas a prazo” (JVP, 2/2/2012). “O ajustamento, como está desenhado, dita um mergulho recessivo na economia” (HG, 30/1/2012). “Se a estrutura da economia não mudar, nunca teremos mais prosperidade. Seremos apenas pobres” (HG, 12/3/2012). O problema do país não é o que o governo está a fazer. O problema está no que não está fazer” (HG, 1/5/2012). “Chamámo-los vai para um ano. Eles viriam. Chegaram cheios de cagança: traziam um plano. O plano. O plano para pôr Portugal na ordem. (…) o plano para o crescimento não existe, é uma simulação, uma projecção das compreensíveis frustrações que a austeridade provoca” (PSG, 17/5/2012). E depois surgem as opiniões de que a austeridade é tóxica e o programa de ajustamento está mesmo a correr muito mal. “Não há onirismos nem niilismos, o programa de ajustamento é um rol de destruição. Destruição de emprego, de dívida, de economia; dizima uma geração da inocência, tributa, corta, retira, anula, toca e não foge. Há até um sentido no nome, Programa de Ajustamento Económico e Financeiro, porque o PAEF é um PAF!, uma bofetada de luvas encarnadas de sangue” (PSG, 24/2/2012). “Que sucesso é este que nos traz até este desemprego? E que nos promete ainda mais desemprego?” (HG, 27/2/2012). “A questão é que este modelo (exportações assentes em baixos salários) exige que continuemos a ser os mais pobres da Europa” (NS, 3/3/3012). “Das quase 300 mil empresas portuguesas, apenas 18.000 são exportadoras. Dessas, uma centena exporta 50% do total. Há depois 3000 que vendem 45% e 14.000 que representam apenas 4 a 5% do total. Por isso, apoiar as empresas exportadoras é muito importante. Mas ignorar as centenas de milhares de PME que estão viradas para o mercado interno é a receita certa para o desastre” (NS, 21/4/2012). “E a realidade mostra-nos cada vez mais que a austeridade está a ser mais para uns do que para outros e, exactamente por isso, está a traçar o caminho para o fracasso e para a desunião entre os portugueses” (HG, 26/4/2012). Surgem opiniões de que o prolongamento das medidas recessivas e experimentalistas levarão ao empobrecimento do país e de um povo. “Título: Isto não está a resultar, dr. Gaspar. (NS, 12/5/2012). “Na semana em que a troika está em Portugal para avaliar pela terceira vez o programa de ajustamento, a economia começa a dar todos os sinais de que a política de austeridade não vai conduzir aos resultados esperados, a não ser que seja rapidamente corrigida (…) E corre o sério risco de entrar numa espiral recessiva que a arrasará por muitos e longos anos” (NS, 18/2/2012). “Portugal está a ser alvo de políticas nunca experimentadas” (HG, 1/3/2012). “Ideologia pura e dura, a par de mentiras técnicas é o que acontece, por outro lado, com a aprovação das alterações ao Código de Trabalho e o fim de dois feriados. (…) O objectivo não é o aumento da produtividade, mas o embaratecimento do factor trabalho. Ponto final” (NS, 31/3/2012).

 

3) de Julho a Novembro de 2012, há uma inversão de todos os sinais. Há um julgamento crítico sobre o papel da austeridade, como algo já a evitar, por ser ineficaz tal e qual como está a ser aplicada. E passa a ideia de que o Memorando está a ser um verdadeiro falhanço. É o período marcado, primeiro, pelo aprofundamento da retracção económica que conduziu a uma espiral recessiva, delapidando as metas orçamentais e pondo em causa a própria atitude governamental de “bom aluno” da troika. A julgar pelos artigos dos jornalistas, o Governo ainda inicia diligências junto dos banqueiros para baixar o custo do crédito que volte a financiar as empresas. Ao que parece, debalde. Em segundo lugar, o Tribunal Constitucional chumba, a 5/7/2012, a intenção do Governo de manter os cortes de subsídios de Natal e de férias na Função Pública de 2011. Os jornalistas criticam a visão curta do Governo de fazer cortes, mantendo as estruturas. “Exigem-se reformas, no Estado, que não estão feitas e, pelos vistos, nem sequer estão a caminho. A quebrar os interesses protegidos, as classes protegidas, a democratizar a nossa economia” (AC, 9/7/2012). “Todo o facilitismo foi destruído pelo Tribunal Constitucional que salvou o País, ao impor uma estratégia mais saudável de redução do défice público, e que pode ter salvo o Governo de si próprio” (HG, 10/7/2012). “A decisão legal (do TC) de não permitir cortes duradouros na função pública devia ser acompanhada de uma alteração legislativa (…) de permitir despedimentos na função pública. (…)Isso, sim, seria coragem política” (PSG, 12/7/2012). “Um ano depois, um milhão de desempregados, milhares de falências, colapso nos serviços públicos, quebra brutal no consumo e no investimento e êxodo sem precedentes de jovens talentos portugueses, a receita infalível para nos salvar da crise está em vias de ser bastante alterada. Se isto não é falhanço, não sei o que é falhanço” (NS, 14/7/2012). “A economia está a ajustar-se do lado dos trabalhadores. Não chega. É preciso reduzir o tamanho do Estado e pagar dívidas para reduzir impostos” (PSG, 1/8/2012). “Pedro Passos Coelho ganhou as eleições com um programa que rejeitava aumento de impostos, e, depois disso, já retirou metade do subsídio de Natal de 2011 e apresentou um orçamento de 2012 que agravou todos os impostos” (AC, 6/9/2012).

Em terceiro lugar, o Governo vê-se esmagadoramente questionado nas ruas. O anúncio surgido do nada de cortar 7% dos salários através da subida dos descontos sociais dos trabalhadores e remetendo-os directamente para as empresas dá azo às maiores manifestações, , organizadas por uma estrutural informal designa Que se lixe a Troika, em que jornalistas do painel participam. O Governo recua. É o início da descida da popularidade dos partidos da coligação de direita e de um processo irreversível de contestação ao Memorando, incluindo no interior da própria coligação política.

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Pela primeira vez, a popularidade da maioria fica claramente abaixo dos 40%, nunca mais recuperando. Os jornalistas fazem eco desse mal-estar. “Chegará a altura em que deixaremos de perguntar de quem é a culpa e quereremos ouvir apenas um pedido de desculpa. (…) O anúncio de medidas de austeridade feito pelo primeiro-ministro ao entardecer de sexta-feira, antes de um jogo de futebol, é uma tragédia” (PSG, 10/9/2012). “Governo perdeu o País, o País pode perder a troika, Portugal regressou a um pântano impensável ainda há pouco mais de uma semana, regressaram os piores pesadelos, e é difícil perceber como é que se vai sair daqui, deste beco sem saída” (AC, 17/9/2012). “A troika devia olhar olhos nos olhos dos portugueses e responder a três perguntas: acredita mesmo que, com mais austeridade generalizada, a economia vai começar a crescer no segundo trimestre do próximo ano? Acredita mesmo que Portugal vai conseguir a redução brutal do défice em cada um dos próximos dois anos depois de ter falhado o deste ano? Acredita mesmo que Portugal conseguirá pagar a sua dívida pública já superior aos fatídicos 120% do PIB? São perguntas simples, mas entristecidas. As contas não quadram. Não batem. Assim não vamos lá” (PSG, 25/9/2012). “Quando a cegueira ideológica se sobrepõe ao bom senso, a realidade importa-se de mostrar que é o bom senso que tem razão” (NS, 29/9/2012).

A crítica que é feita pelos jornalistas não é tanto pela opção do Governo de cortar em 7% os salários do sector privado. Veja-se a Caixa “As contradições dos jornalistas” e torna-se evidente que a maioria dos jornalistas, pelo menos desde 2010, sempre defendeu a necessidade de uma redução dos “custos do trabalho”.

 

CAIXA: As contradições dos jornalistas: Estiveram os jornalistas a favor ou contra da desvalorização interna?

A 7/9/2012, o primeiro-ministro anuncia a intenção de cortar as contribuições sociais do patronato de 23,75 para 18% e aumentar a Taxa Social Única (TSU) dos trabalhadores de 11 para 18%. A medida foi explicada pela necessidade de reduzir os custos do trabalho, com vista a melhoria da competitividade das empresas nacionais. Os jornalistas do painel criticaram a medida. “O trade-off entre o aumento da TSU dos trabalhadores e a redução da TSU das empresas é apenas um embuste político, que nem sequer uma opção ideológica justifica” (AC, 10/9/2012). “O problema é que a medida não está a passar para a opinião pública. Para ela, o governo está a tirar aos trabalhadores para dar às empresas É injusto? É” (CL, 10/9/2012). “Passos Coelho, Gaspar e Borges estiveram fechados em salas tempo de mais. Esqueceram-se que cá fora há pessoas” (PSG, 12/9/2012). “A estratégia é a adequada, diz Gaspar. Não foi, senão não seríamos confrontados com mais impostos. (…) Falhou” (AC, 12/9/2012). “Esta medida tem um fito e é um fito de política económica: trocar os termos entre riqueza gerada pelo trabalho e pelo capital” (PSG, 13/9/2012). “O Governo não anunciou apenas o experimentalismo económico, ensaiou um experimentalismo político difícil de perceber” (AC, 14/9/2012). “O caso da TSU pode ser usado para mostrar como os especialistas não devem substituir os políticos em decisões de políticas públicas” (HG, 14/9/2012). “Somos 10 milhões de ratinhos brancos sujeitos a experimentações de uma desvalorização fiscal por via da TSU” (NS, 15/9/2012). “No meio da maior crise económica dos últimos 40 anos, onde a perda do rendimento disponível das famílias tem sido enorme, Passos Coelho tira do trabalho para dar ao capital com a promessa de que isso irá criar emprego. E fá-lo com a desculpa de que o Tribunal Constitucional o obrigou” (JVP, 15/9/2012). “Com o aumento da TSU para os trabalhadores, e mais impostos para 2013, passámos da possibilidade da austeridade inteligente para a iminência da austeridade burra” (PSG, 20/9/2012). Mas o pensamento desde jornalistas nunca foi desfavorável a medidas de efeito semelhante. Desde o início da crise das dívidas soberanas, em 2010, que a redução salarial foi defendida – de diversas formas. O Governo Sócrates “podia ter feito outra coisa? Podia. Podia, por exemplo, ter lido a muito estimulante proposta de Ricardo Reis, professor de economia na Universidade de Columbia, em Nova Iorque. E essa proposta passa por descer a TSU de 23,75% para 17% e subir o IVA do regime geral de 20% para 25%, com aumentos semelhantes nos regimes especiais do IVA, no IMT e num imposto sobre rendas” (NS, 22/5/2010). “Silva Lopes tem uma pequena sugestão que pode ser determinante. Utilizar parte da receita do aumento do IVA para baixar os descontos das empresas para a Segurança Social, diminuindo custos do trabalho” (JVP, 9/10/2010). “Os custos unitários dos produtos exportados não são só salários: são juros, factura energética, impostos, transportes, matérias-primas…” (PSG, 7/12/2010). “Já quanto às alterações das leis laborais, espera-se um embaratecimento do despedimento para as empresas e admite-se flexibilização no contrato de trabalho em aspectos como o banco de horas (…). São aspectos positivos” (PSG, 15/12/2010). “Tudo seria mais simples se o despedimento individual fosse, mesmo que marginalmente, flexibilizado. E as indemnizações reduzidas para todos com a justiça a garantir que seriam pagas” (HG, 25/1/2011). “Baixamos os salários ou reduzimos a TSU. Rejeitamos a primeira opção” (AC, 11/5/2011). “Se se quer descer os custos do factor trabalho, talvez seja melhor adoptar as propostas de Luís Campos e Cunha e Daniel Bessa: aumentar o horário semanal de trabalho em duas horas ou duas horas e meia” (NS, 28/5/2011). “Uma situação que, (…), obriga os responsáveis governamentais a repensar a legislação laboral, flexibilizando-a, para, juntamente com a avaliação em curso da redução da TSU, atrair mais investimento empresarial” (AC, 8/8/2011). “Temos de dar corda aos sapatos. Como? (…)3 – Baixar a TSU em 10%” (CL, 14/9/2011). “Claro que é preciso alterar a legislação laboral para permitir que se possa reduzir salários (…). E a folha é, frequentemente, a única parcela dos custos em que podem mexer” (HG, 18/11/2011). “Só de me lembrar da quantidade de pessoas com responsabilidade cívica e política que se viraram contra esta medida [baixa da TSU] vêm-me à boca uma série de palavras menos próprias” (JVP, 19/11/2011). “Títuto: Não deixe cair a TSU, Vítor. Ainda…! (CL, 29/2/2012). Surge, em Agosto de 2012, a alteração do Código do Trabalho, embaratecendo o custo do trabalho extraordinário, com o fim de dias de férias e feriados, do descanso compensatório, com a criação de bancos de horas individuais e limites à contratação colectiva. A ideia era embaratecer o custo de trabalho em 5,23% e isso estimularia o emprego em 2,54% no primeiro ano e 10,55% a longo prazo. “António Borges afirmou em entrevista ao [canal] Etv que a redução de salários não é uma política, é uma urgência, o que motivou críticas severas dos partidos da Oposição. Mas, a verdade é que o ‘12º ministro’ do Governo de Passos Coelho disse uma evidência (…) o aumento da competitividade só lá vai, no curto prazo, por factores como a redução salarial” (AC, 4/6/2012). “Quando se lê o relatório do FMI sobre os sucessos e os fracassos do plano de ajustamento português até à data, há um critério que parece decisivo. O que respeita ao “povão”, de pessoas e empresas (lei laboral, lei das rendas, ajustamento do défice externo), está do lado do sucesso; já o que inclui grandes empresas (rendas da energia, concurso de telecomunicações, empresas do Estado, portos e ferrovia) está do lado dos insucessos. Estranha coincidência” (PSG, 19/7/2012). “Se todos os países do euro começarem a cortar custos salariais, o resultado é ficarmos todos mais pobres” (HG, 7/11/2012). Mas passado um ano sobre o efeito da reforma laboral, os resultados são frustrantes e os problemas mantém-se, mas já com novas soluções à vista. “Um ano depois ainda são escassos os efeitos dessa reforma considerada tão crucial. (…)A precariedade do trabalho só existe porque existem nas empresas um monte de pessoas que ainda têm um contrato vitalício de permanência mesmo que desempenhem mal o seu trabalho” (JVP, 3/8/2013). “Com a troika o que mudou? Alguma coisa, mas muito pouco. Reduziram-se custos salariais, nomeadamente no trabalho extraordinário. Mas continua a ser legalmente impossível reduzir salários. Para os salários descerem é preciso o acordo do trabalhador ou passar pelo desemprego (…) Com inflação baixa, impedir que os preços e salários diminuam é condenar o pais ao desemprego” (HG, 17/12/2013). “O Tribunal Constitucional (…) anulou o despedimento por extinção do posto de trabalho e por inadaptação, por considerar que ajusta causa passava a ser um conceito indeterminado. O que o Governo quer é que o despedimento individual seja tão fácil como o despedimento colectivo, pois, crê, quanto mais fácil for despedir mais fácil será contratar” (PSG, 25/1/2014). “Proibir o despedimento, congelar rendimentos ou regras de aumentos salariais quando a empresa vende menos ou o Estado recebe menos impostos, ou tem de gastar mais para apoiar quem mais precisa, é reivindicar o direito a ter sol todos os dias” (HG, 7/3/2014). “PSD, CDS e PS precisam de acordar uma alteração da Constituição que flexibilize quatro áreas do regime: 1 – estrutura do Estado (permitir despedimentos e reduções salariais); 2 – mercado laboral (flexibilização); (…) É muita coisa? É. Mas é inevitável” (CL, 14/5/2014).

 

Os jornalistas estão contra, sim, a ideia de mais medidas de austeridade pelo “lado da receita”, qualificando a subida da TSU dos trabalhadores como mais um imposto. Estão desiludidos. A opção do Governo, semanas depois da crise da TSU, de lançar o “enorme aumento de impostos” para 2013, engrossa mais a contestação à aplicação do Memorando. A crise de Setembro torna-se a ponta visível do iceberg teórico: a austeridade expansionista é uma miragem, o vazio político de um caminho alternativo ao passado, prometido um ano antes. “O Governo mais ideológico da Democracia, o que prometeu mudar o regime económico de Portugal e aproveitar a oportunidade, única, para reformar o País, soçobrou a uma realidade que não foi capaz de antecipar (…). O Governo abandonou, definitivamente, a vontade de mudar o País” (AC, 4/10/2012). “Há um ano, muitos portugueses acreditavam. Estavam mobilizados para salvar o país. (…) Hoje, muitas pessoas só quererão salvar-se a si mesmas. A si, aos seus. A emergência tornou-se individual. O Governo diz-se sem alternativas” (PSG, 16/10/2012). “O memorando da Troika, mesmo incompleto como é, permitia que o Governo fizesse o que se comprometeu a fazer quando tomou posse. Libertar o País e democratizar a economia. Mais, exigia que o Governo o fizesse, sob pena de chegarmos a Junho de 2014 (…) mais pobres e sem qualquer tipo de perspectiva de futuro” (AC, 29/10/2012). “O Governo, na actual conjuntura económica, social e política, não pode concretizar as ideias mais liberais deste PSD de querer ter na sua história o sucesso de ter corrigido os graves desequilíbrios do País” (HG, 14/11/2012). “O Governo já percebeu que a estratégia que seguiu até agora está esgotada” (AC, 20/11/2012).

Os jornalistas saem da crise de Setembro, na sua maioria, desiludidos e a exigir um novo “fôlego” ao Governo para enveredar por uma reforma do “lado da despesa pública”.

 

5) De Dezembro de 2012 ao início de 2014, a ideia dominante dos jornalistas é, precisamente, a do regresso à sua preocupação de fundo: a da inevitabilidade da austeridade pelo “lado da despesa pública” (corte de funcionários, de vencimentos, de despesa social), em articulação com urgência da definição das novas funções do Estado.

Politicamente, é um período muito rico em acontecimentos: o rescaldo da discussão orçamental sobre o “enorme aumento de impostos”; o regresso aos mercados financeiros a 23/1/2013 (com uma emissão a 5 anos) e a 7/5/ 2013 (a dez anos)no 1º trimestre de 2013; é conhecido o relatório do FMI sobre a necessidade de redimensionar o Estado; a flexibilização pela troika das metas orçamentais e das condições de pagamento da dívida pública; a demissão do ministro Miguel Relvas (após um longa campanha popular nas ruas); o arrastamento no tempo da 7ª avaliação da troika ao cumprimento do Memorando e que redundaria numa autocrítica da troika ao desenho do Memorando; a crise no Chipre e as tergiversações da UE sobre a tributação dos depósitos bancários; a remodelação governamental motivada pela demissão de um membro de governo após ter sido travado em ir contra os detentores de rendas excessivas (no sector eléctrico); a aceitação pela troika de défices orçamentais mais elevados em 2013 e 2014 (respectivamente, de 5,5% do PIB em vez de 4,5% e de 4% em vez de 2,5%); o surgimento do tema de um possível programa cautelar; as tensões na coligação de direita que redundam na demissão – a 2/7/2013 – do ministro das Finanças, pilar do Governo e que redundam na crise governamental desencadeada com a demissão de Paulo Portas, a 3/7/2013; o surgimento do tema da insustentabilidade da dívida pública; o anúncio da reforma do IRC como forma de relançar o investimento; os vários chumbos do Tribunal Constitucional, nomeadamente as intenções de ir ao encontro das exigências da troika para um pronunciado corte de despesa; a atenuação nos esforços de corte da despesa pública; e os primeiros sinais de retoma económica ainda em 2013.

Ao longo deste período, adensa-se a ideia da falta de visão estratégica por parte do Governo. “É preciso que o corte na despesa do Estado seja mais do que salários e pensões” (PSG, 2/10/2012). Era melhor “outra austeridade”, não menos mas que “obriga a escolhas e opções, a mudar o modelo de financiamento na Educação, Saúde e Segurança Social, que torne o Estado mais eficiente, com menos funcionários” (AC, 2/10/2012). O Governo passa a ideia de que se mostra incapaz de ter um discurso coerente sobre a necessidade da austeridade: “Ficámos todos chocados quando o presidente do BPI respondeu à pergunta retórica ‘O país ainda aguenta mais austeridade?’ com a resposta ‘Ai aguenta, aguenta’. Aguentaria, sim, se a austeridade fosse percebida como justa, mesmo sendo injusta” (HG, 5/11/2012). Tudo dá a impressão de se querer apenas cumprir as metas: “O Governo chega tarde, e a más horas, à discussão sobre a refundação do Memorando, à reforma do Estado, à redução da despesa” (AC, 14/11/2012). E os jornalistas começam a desligar-se politicamente da coligação de direita: “O problema é mesmo desta Direita que está no Governo e que prometeu mudar, mas escolheu um caminho que nos pode levar a ficar ainda pior” (AC, 19/11/2012). “Sim, é verdade que o PSD vendeu a ilusão de que bastava cortar umas ‘gorduras’, que não ia doer nada. Pois não é verdade. O Estado é um prestador de serviços de educação, de saúde, de segurança, de apoio social. É inevitável que perante a necessidade de reduzir gastos tenha de reduzir salários” (HG, 11/1/2013). O director do Diário Económico defende um novo Setembro: “Deveríamos todos ir para a rua exigir novas políticas, porque as respostas de Passos Coelho e Vítor Gaspar para a redução do défice foram medidas temporárias de corte de despesa e um aumento de impostos que está a matar a economia, a provocar recessão e desemprego” (AC, 4/3/2013).

À medida que o tempo passa e que o Governo vai adiando a reestruturação do Estado, avolumam-se, pois, os sinais de decepção (ver Caixa: O discurso da desilusão). Na opinião dos jornalistas, o Memorando continua a ser mal aplicado e daí da razão do seu insucesso, o que aos poucos entronca com a crítica à gestão da conjuntura político-partidária/eleitoral. Mas quanto menos resultados se vêem, mais se tende a encontrar causas objectivas (estruturais) para a crise.

 

CAIXA: O discurso da desilusão

“O túnel foi o Memorando da troika. Era o túnel de salvação, único caminho para regressar do precipício. E sem alternativa (…) Não havia alternativa à troika. Hoje há? Há – mas é pior. Porque as únicas alternativas em cima da mesa são as radicais, tais como sair do euro ou não pagar a divida pública” (PSG, 7/1/2013). “A troika entrou em Portugal com um cabaz de objectivos (…). Mas, no fundo, a métrica de sucesso da equipa permanente que está em Portugal é uma: sair daqui” (PSG, 10/1/2013). “Não é fácil dizê-lo. Mas a conferência promovida pelo Governo sobre a reforma do Estado foi de uma triste pobreza” (HG, 17/1/2013). “Basta. Chega. Estou farto de debates sobre o Estado. (…) Quem quer mesmo debater o Estado, o que temos, o que queremos e o que vamos ter? Ninguém. É só teatro” (PSG, 17/1/2013). “O País está numa espiral recessiva e os portugueses já mergulharam numa espiral depressiva, porque o Governo decidiu gerir o País sem sair do gabinete (…) O Governo só tem uma saída, é regressar à casa de partida e abrir um verdadeiro processo político de renegociação do acordo com a troika” (AC, 21/2/2013). “Nós pensávamos que tínhamos as respostas todas. A crise desempregaria, a austeridade tributaria, as reformas incomodariam, mas no meio haveria um meio e no fim haveria um fim. (…) É quase patético ver como os ortodoxos da austeridade dizem agora o contrário” (PSG, 4/3/2013). “Tudo falhou” (NS, 13/3/2013). “O Governo está bloqueado, o País está bloqueado. (…)O PSD esforça-se, agora, por reescrever a história para explicar o falhanço do ministro das Finanças. O programa, dizem os seus dirigentes, foi mal desenhado (AC, 18/3/2013). “O Governo merece ser censurado, seguramente” (AC, 4/4/2013). “Passos não governa, obedece. (…) Quantas vezes foi dito e escrito que ‘falta política’? Quantas?! E para que serviu? Para nada. Vozes de céu não chegam aos burros” (PSG, 20/2/2013). “Passos Coelho quis fazer do programa de ajustamento a via para reformar o Estado e criar instituições para uma sociedade mais moderna (…). Não o conseguiu porque nem tentou” (PSG, 8/4/2013). “Transformámos os chefes de missão quase em estrelas pop. Depositámos neles a esperança de corrigir de vez erros identificados até à exaustão durante as últimas quase duas décadas. Que fizeram eles? Cometeram erros ainda mais graves. (…) Erros pelos quais não são responsabilizados e que estão a fragilizar as democracias” (HG, 2/5/2013). “Falemos verdade. Este Governo não fez qualquer reforma da despesa do Estado. Nada! Zero!” (JVP, 18/5/2013). “O Governo bateu numa parede, pelo menos neste ciclo político. E já não conseguirá fazer muito mais” (AC, 12/6/2013). “O próprio FMI reconhece agora o fracasso e, sobretudo, a impostura consciente dos seus próprios planos” (PSG, 20/6/2013). O guião da reforma do Estado que o ministro Paulo Portas vai apresentar vai ser uma mão-cheia de nada (…). A troika também vê esta evidência, mas está de mãos atadas (…). Porque já nem Vítor Gaspar, este ou outro Gaspar qualquer, os convence da bondade da reforma do Estado português” (AC, 1/7/2013). “Foi esta gente que elegemos, em que confiámos, que mandatámos, é esta gente que permanece gozando de uma contestação sem violência e da tolerância social à austeridade. Não foi o país que falhou. Foi o Governo e a Europa. (…) O fracasso confesso de Gaspar é o fracasso de uma política económica dita liberal, que teve como ideólogos pessoas que aqui foram chamadas de estupidamente inteligentes, incluindo António Borges, Braga de Macedo e, claro, Vítor Gaspar. A lógica de destruição da má economia induzida pela escassez não se cumpriu” (PSG, 2/7/2013). “Eu acreditava mesmo que com um chicote em cima de nós, não teríamos outra hipótese senão reformar o Estado e o Pais. É hora de dizer que, depois de ver o que vi nos últimos meses (que culminou com a paralisação do Governo), enganei-me redondamente. (…)Portugal é um país irreformável” (CL, 2/7/2013). “Quando são muitas as dúvidas sobre a capacidade do Governo de levar a cabo a reforma do Estado, Vítor Gaspar deixa claro que não tem dúvidas nenhumas. Não será mesmo para fazer (…). A certidão de óbito está passada” (AC, 2/7/2013). “O actual Memorando (…) está morto” (JVP, 3/7/2013). “O programa de ajustamento foi executado da pior forma do ponto de vista da redução do défice (…). Gaspar percebeu isso e foi embora, Paulo Portas percebeu isso e quis ir embora. Passos Coelho percebeu isso, mas aguentou, e mudou o discurso. (…) acabou o Governo mais troikista do que a troika” (AC, 17/9/2013). “Perante os objectivos explícitos do programa de ajustamento, ele falhou redondamente (…) O perfil da economia portuguesa está longe de ter mudado radicalmente desde 2008 (…)Não vamos querer viver neste futuro” (NS, 26/10/2013). “Estava-se mesmo a ver que a montanha ia parir um rato. E pariu mesmo. O guião para a reforma do Estado, de Paulo Portas, é de uma pobreza confrangedora” (CL, 1/11/2013). “Apesar do documento nos presentear com a frase cortar é reduzir, reformar é melhorar, deparamo-nos com um rol de medidas onde é claro que a prioridade é apenas cortar na despesa” (JVP, 2/11/2013).

 

5) Ao longo do 1º semestre de 2014, quando se torna mais clara a retoma económica, atenuam-se as palavras pessimistas. Aplaudem-se os resultados, sem que sejam associados a uma não aplicação da essência do Memorando ou até a um recuo na intensidade da aplicação das reformas inicialmente traçadas, como os próprios jornalistas tinham criticado anteriormente. Tudo passa a ajustar-se: “O que as projecções do Banco de Portugal mostram é que é possível ter crescimento com saneamento das finanças públicas” (CL, 26/7/2013). “Afinal, passados doze meses, há resultados e há esperança” (AC, 2/1/2014). “O nosso programa está errado? Não: a confiança de consumidores e empresários não está a voltar? A economia não voltou a crescer? O desemprego não está em queda? O investimento não está a melhorar? A economia não ficou mais competitiva (v.g. exportações)? Os juros não estão em queda?” (CL, 9/1/2014). Mas ao mesmo tempo nota-se uma recentragem nos objectivos: passa a sublinhar-se o pouco que se conseguiu: “Nem que seja pelo que já corrigimos nas nossas relações com o mundo financeiro, os sacrifícios por que passámos nestes últimos três anos valeram a pena” (HG, 1/1/2014). “O programa de ajustamento tem, e teve, virtudes, o primeiro dos quais é desde logo garantir que voltaremos a ter capacidade para o Estado se financiar sozinho” (AC, 4/1/2014). “Actualmente podemos não ver o futuro com euforia, mas pelo menos a economia deixou de se afundar” (HG, 1/4/2014). “A soberania como bandeira política é, numa interpretação benévola, um disparate irreflectido (…). A soberania é um conceito que não faz sentido, mesmo que não existisse troika em Portugal” (HG, 9/1/2014). Há a certeza sobre a fragilidade das alterações face ao programa inicialmente traçado. Aceita-se que as ideias iniciais – que os jornalistas tanto abraçaram – eram afinal “um mito”: “Talvez seja altura de lembrar que nenhuma economia consegue fazer mudanças estruturais em três anos. É mais à década…” (CL, 2/1/2014). “Quando foi conhecido o programa de ajustamento assinado com a troika, criou-se a ideia, um mito, como se percebe, de que o País seria outro ao cabo de três anos” (AC, 6/3/2014). “A principal dúvida metódica assenta na necessidade de perceber se houve ou não uma mudança estrutural do sector empresarial português. Ou, pelo menos, se está em curso. O Banco de Portugal diz que sim, e, pelos números, eu acredito” (AC, 27/3/2014). Torna-se claro para os jornalistas que os grandes objectivos do Memorando ficaram pelo caminho e que a austeridade terá de continuar no futuro. “Os partidos permanecem capturados pelos mesmos grupos de poder de sempre: banca, Lisboa, grandes empresas, clientelas e sindicatos de votos” (PSG, 4/1/2014). “Há todo um trabalho na frente das contas públicas, que não foi feito nestes três anos de troika” (HG, 27/1/2014). “Os salários dos funcionários públicos vão ter de ser cortados tal como as pensões de reforma. De forma definitiva” (HG, 21/2/2014). “Lêem-se os relatórios do FMI e da Comissão Europeia (…)e acaba-se com duas perguntas a descer a língua. Primeira: o que andámos nós então a fazer? Segunda: o que andaram eles então a fazer?” (PSG, 22/2/2014). “Saímos do bloco operatório, mas ainda estamos nos cuidados intensivos” (JVP, 18/4/2014). “Porque isto não acaba aqui. Antes acabasse” (PSG, 3/5/2014). “Não tenhamos ilusões. (…) Anunciar amanhãs que cantam, quando ainda temos de estar preparados para tempestades, é vender sonhos que se podem transformar em pesadelos” (HG, 5/5/2014). “Nós vamos ter de aprender a viver com o euro. O que significa ser muito mais disciplinado financeiramente e aceitar que os salários podem ter de descer para enfrentar conjunturas de crise sem destruir emprego” (HG, 16/5/2014). De resto fica a frustração de ver vivido uma revolução falhada.

 

CAIXA: A Revolução falhada, os vira-casacas e as suas vítimas

“A relação que o Governo tem construído entre o Estado e os cidadãos já não padece apenas da habitual opacidade. Faz-nos sentir a todos irrelevantes. Desprezados” (HG, 17/1/2014). “A fadiga de austeridade está outra vez aí, e agora, anda de mãos dadas com a vontade de ganhar eleições em comícios e manifestações pré-eleitorais” (AC, 3/4/2014). “O ministro da Economia, António Pires de Lima, definiu 59 prioridades de infraestruturas para o País nos próximos sete anos, portanto não só não travou a proposta dos grupos de interesse que se sentam à mesa do orçamento para o investimento em 30 obras prioritárias, como lhe acrescentou mais 29” (AC, 4/4/2014). “Sair de Portugal é confirmar o seu sucesso. Foi para isso que vieram: para poderem sair. Se o país fica melhor ou pior já é assunto de quem cá fica. Eles fizeram o seu trabalho. O Governo não. As reformas estruturais foram tão pouco reformas e tão pouco estruturais (…). A oportunidade foi perdida” (PSG, 3/5/2014). É já possível olhar para trás e identificar os mitos que foram criados há três anos, por acto e omissão, por razões puramente político-partidárias, por voluntarismo ingénuo ou apenas por incompetência, e que nos dão, a todos, a terrível sensação de uma vitória amarga, de um sucesso doloroso. (…) O País seria muito diferente ao fim de três anos de programa, seria uma espécie de refundação, e os portugueses viveriam melhor, em melhores condições económicas e financeiras. Nenhum dos mitos se confirmou, não poderiam confirma-se num prazo tão curto, mesmo que tudo fosse bem feito, e não foi. (…) Nem a economia mudou assim tanto – e deveria ter mudado mais qualquer coisa – nem as pessoas vivem melhor – não poderiam, porque perderam rendimento. Mas existiam expectativas, que foram defraudadas.” (AC, 5/5/2014). “O balanço destes três anos está longe daquele que o primeiro-ministro fez. (…) o programa de ajuda externa não correu bem em Portugal, como também não correu bem na Irlanda e ainda menos na Grécia. Os custos do reequilibro financeiro foram muito elevados” (HG, 5/5/2014). “As reformas que este Governo já enterrou (…) continuam a ser necessárias (…). Temo que ainda venhamos a ter saudades da troika”(AC, 6/5/2014). “Três anos depois, o ajustamento deixa uma classe média pauperizada, meio milhão de desempregados de longa duração, 300 mil jovens emigrados, um Estado social enfraquecido, um modelo económico assente em baixos salários e uma enorme carga fiscal, que será ainda agravada em 2015. Mas, claro, o país conseguiu regressar aos mercados pelo seu pé. É a isto que o pensamento dominante chama sucesso” (NS, 10/5/2014). “Uma economia cujo crescimento depende de uma só refinaria é uma economia sólida? (…) O Banco de Portugal tem dito que sim. É o maior apoiante do Governo nesta tese, a de que a economia sofreu mesmo uma transformação estrutural: tornámo-nos um país exportador e temos contas externas equilibradas de vez. (…)Não, o nosso Estado não beneficiou de nenhuma reforma (…) Não, a nossa segurança social não foi reformada, apenas cortou. (…) Não, as nossas contas públicas não cortaram gorduras nem o seu equilíbrio depende de outra coisa que não sejam cortes… aparentemente temporários. E de impostos, impostos, impostos (…) Acabou-se a terceira intervenção externa em Portugal em 40 anos de democracia. Ou talvez tenha sido ela a arrumar-nos a nós. É muito duvidoso que estejamos preparados para enfrentar a concorrência externa, que tenhamos aprendido a viver com uma moeda única como a alemã numa economia como a portuguesa, que nos contentemos com uma população emigrada, tributada ou desempregada” (PSG, 17/5/2014). “As perspectivas criadas em 2011 foram frustradas, nem é preciso dizer de que forma. Toda a gente sabe” (PSG, 31/5/2014).

 

Conclusões

Se os jornalistas especializados desempenham um papel fulcral na formação da opinião social, então é possível afirmar que, na crise vivida pela sociedade portuguesa de 2010/14, a opinião desses jornalistas contribuiu para reiterar a versão oficial sobre as causas da crise, sobre a necessidade de uma das mais violentas intervenções externas em Portugal e sobre a inevitabilidade da própria terapia de austeridade.

Ao longo de 4,5 anos, a opinião média deste painel vincou-se como defensora de uma aplicação estrita do Memorando, com vista a um ajustamento económico de emergência e de alteração profunda da estrutura da própria economia. Foi na defesa desses objectivos que criticou tergiversações e adiamentos por parte do Governo, que – aos olhos dos próprios jornalistas – seriam responsáveis pelo falhanço geral do Memorando.

De 2010 até ao desembarque da troika, a maioria dos jornalistas do painel partilhou com as autoridades uma teoria interpretativa dos acontecimentos. Das suas crónicas, extrai-se a ideia de que os desequilíbrios económicos de Portugal – externo, orçamental e no emprego – tinham a sua origem nos factos de: 1) Portugal produzir pouco e mal, sobretudo para o mercado interno, e viver por isso de importações (para o seu consumo, investimento e até para exportar), em resultado de uma crónica “falta de competitividade externa” das empresas nacionais; 2) Essa “falta de competitividade” ter sido camuflada desde a moeda dessas pessoas ficialmente mantidass artificiais – desvalizaçarcado externo. atraente como actividade. er mal aplicado, afinalúnica em 2000, ao viver a sociedade de crédito barato (“vivemos acima das nossas possibilidades”) e de fundos públicos mal geridos, retirados à sociedade através de impostos; 3) O Estado estar capturado por um conjunto vasto de lobbies (“interesses”) que vive à custa do Orçamento – funcionários públicos, professores, médicos, enfermeiros, magistrados, polícias, partidos, políticos, etc., culminando com os beneficiários de investimentos públicos e, malignamente, de corrupção e desbaratamento de recursos públicos (“cada serviço público tem um interesse por detrás”); 4) Esses “interesses” serem obstáculos naturais à reestruturação do Estado, de forma a equalizar o nível de serviço público ao baixo nível do que se produz (“quem não tem dinheiro, não tem vícios”); 5) toda esta situação ter gerado dois desequilíbrios gémeos: um externo, delapidando as nossas reservas, e outro orçamental. E aqui entra a troika.

Ao aceitar a validade de este diagnóstico, aceitou-se como válida a terapia correspondente: 1) O Estado está no centro das reformas, ao absorver recursos da economia que poderiam melhorar a competitividade das empresas; 2) Como tal, há que reduzir a despesa pública (reduzir funcionários, vencimentos, despesa social e áreas de intervenção do Estado, privatizar), tributar rendimentos (para reduzir a procura interna), mexer-se na legislação laboral (para reduzir rendimentos e flexibilizando despedimentos), cortar-se com os lobbies que beneficiam de rendas excessivas; 3) Resultado: Menor despesa e mais impostos reduzem o défice orçamental e, com saldos primários positivos, a dívida pública; 4) A quebra de rendimento reduz a procura de crédito, abatendo o rendimento artificial das empresas e dos contribuintes, o que aumentará a poupança e tornará o mercado interno menos atraente como destino de actividade; 5) Ao reduzir os custos de contexto (rendas excessivas e custos do trabalho), melhora-se as condições de actividade das empresas que olharão sobretudo para o mercado externo; 6) O desemprego – vindo de actividades artificialmente mantidas e viradas para o mercado interno – subirá, mas a “libertação” dessas pessoas terá o lado bom de forçar a uma descida dos salários (por excesso de oferta de mão-de-obra) e torná-las disponíveis para actividades “reais”, viradas para o mercado externo.

Foi esta grelha de leitura que permitiu concluir que a terapia necessária fora insuficientemente aplicada pelo Governo Sócrates em 2010/11 e que essa fora a causa do incumprimento das metas orçamentais e da relutância política em aplicar drástica e resolutamente o medicamento, ainda que tivesse efeitos imediatos tóxicos. Foi essa malha de leitura que levou os jornalistas a defender esse medicamento como um programa imprescindível, precisamente para evitar o FMI. Se no início de 2011, o painel de jornalistas era contra a vinda do FMI – seria “uma rendição”, uma “humilhação”, uma “rendição”, uma “perdição”, um “desprestígio político total”, com efeitos contraproducentes junto dos investidores externos – passados meses, numa altura em que o sector financeiro muda de posição, estes jornalistas passam a invectivar o poder político a aceitar o mesmo FMI, como embaixador do programa de salvação necessário.

Na sequência dessa alteração de posição, o Memorando de Entendimento é elogiado como um programa quase revolucionário que visa alterar os pilares malsãos da economia nacional, através de uma austeridade forçada, uma austeridade sonhada, a aplicar do “lado da despesa pública”. É por isso que elogiam a formação de um governo de coligação de direita por, finalmente, após décadas de inércia, ir aplicar um verdadeiro programa nacional. A maioria dos jornalistas do painel embarca num programa político e vão defendê-lo até ao fim.

É partindo precisamente dessa posição de princípio que começam por questionar as primeiras medidas do Governo – os primeiros aumentos de impostos ao arrepio do plano maior – embora de forma compreensiva por se tratar de curar males do anterior Governo. Mas acabam a criticar a acumulação de sinais de que o Governo não iria intervir na estrutura dos problemas. Para a maioria dos jornalistas, manteve-se a linha divisória entre uma austeridade (imposição de cortes com um fim orçamental) e uma boa austeridade (imposição de cortes com um fim estrutural). Era a má austeridade que estava a criar recessão que impedia o cumprimento das metas orçamentais. “Precisamos, como nunca, de destruição construtiva e não da habitual destruição destrutiva”.

Ao longo dos 3 anos de aplicação do Memorando, esta grelha de análise vai levá-los – na sua maioria – a defender a coragem de adoptar medidas mais duras: cortes de custos do trabalho, atacar as rendas excessivas de certos sectores, despedir funcionários públicos, cortar no âmbito do Estado Social, flexibilizar despedimentos, tornar possível legalmente a redução salarial no sector privado.

A actividade dos jornalistas centra-se muito sobre o fluxo dos acontecimentos e é inevitável haver uma tomada de opinião sobre o que se está a passar. Mas em todos os momentos, é sensível uma sintonia de posições com os actores que, em cada momento, defenderam as posições mais agressivas de ataque ao quadro legal existente que, nalguns casos, era interpretado pelos representantes das instituições da troika.

Mas foi essa mesma malha de leitura que, face aos silêncios do Governo às suas pressões – “Quantas vezes foi dito e escrito que ‘falta política’? Quantas?! E para que serviu? Para nada. Vozes de céu não chegam aos burros” – que os levou a desmoralizar. A cair na desilusão. A confessar quebras de expectativas criadas pela ausência de resultados, de eficácia do Memorando devido à sua insuficiente aplicação. E não devido à funda recessão criada pela aplicação do Memorando.

O período final da aplicação do Memorando resulta numa situação paradoxal para os jornalistas. Face aos sinais de retoma económica e apesar da ausência de uma boa aplicação do Memorando – falta de visão, cortes sem nexo, austeridade apenas do lado da receita fiscal, ausência de uma reforma do Estado -, a maioria dos jornalistas tende a aceitar que o Memorando produziu resultados. Alguns jornalistas fazem mesmo eco da ideia veiculada pelo Banco de Portugal de que, afinal, se está a iniciar uma alteração estrutural da economia, que apenas então se iniciou, até porque seria impensável mudar a economia em três anos. E por isso, a situação da economia portuguesa continua frágil, apesar da saída da troika.

 Após 4,5 anos de aplicação de um plano de austeridade, que resultou numa quebra pronunciada de actividade, do investimento, do emprego, das expectativas de milhares de vidas, que atirou pessoas para a pobreza e levou a uma subida histórica da emigração portuguesa, receia-se que os jornalistas não tenham retirado as devidas lições deste processo e até das suas responsabilidades. A sua malha de leitura dos acontecimentos continua intacta. Nada mudou, ao que parece. Aos seus olhos, o Memorando foi mal aplicado, por isso foi ineficaz e, por isso precisamente, continua a justificar a sua aplicação integral, desta vez sem troika. Um dia. Em breve.

Notas

[1] Devido à quebra de série em 2011 do Inquérito ao Emprego, a estimativa foi obtida retropolando os coeficientes de variação publicados pelo INE, na nova metodologia.

[2] Idem

[3] João Ramos de Almeida, “Governo congelou valor do déficed e 2009 contra as previsões da DGCI”, 17/5/2010, http://www.publico.pt/economia/jornal/governo-congelou-valor-do-defice-de-2009-contra-as-previsoes-da-dgci-19417010